tag: Melancolia: December 2004

Melancolia

espaço de discussão e de reflexão sobre a melancolia, tanto como sentimento como enquanto atitude diante da contemporaneidade e da sua cultura.

Wednesday, December 22, 2004

A melancolia digital



Para a Maria (de "a melancolia e arte")

O queixume de Cocteau é irrelevante para a questão: primeiro, porque ele não sabe, em verdade, se o mal-estar de Fontenelle era de última hora; segundo, porque assim expõe o lado algo choramingas do seu lamento (no sentido em que o hipocondríaco acha sempre as doenças dos outros menos graves que as suas).
O modo como a Kristeva põe a questão é demasiado esquemático. O movimento não é entre a auto-complacência e a mania, ou, se quiser, não é entre a atonia e a euforia. As saídas para fora da negra verdade que estrutura (e desestrutura) o melancólico são sempre ilusórias, como ele rapidamente reconhece no decorrer dos dias. É no exercício da energia que o atravessa que o melancólico encontra o estreito caminho que lhe é oferecido. Ou em alternativa, essa energia é a sua possibilidade de alegria. O seu exercício (o da energia) não é resultado de uma qualquer inspiração nem de uma graça suficiente e concedida sem justificação. Trata-se de uma necessidade que tem que ser satisfeita quotidianamente. Exige trabalho e tentativas sucessivas de figurar em cada momento o que o Hamlet chama ‘repor o tempo nos gonzos’. A arte nunca é fonte de depressão, é sim lugar de brincadeira e de gozo, sério como o das crianças nos seus jogos. Porém não existe obrigação...é difícil a um cavaquinho dar a gama de um violino. Mas a Maria, nesta metáfora improvável, é o violino...

Belacqua

Sunday, December 19, 2004

Retrato do Dr. Gachet


Van Gogh, Junho de 1890 (1853-1890)

A escada sem degraus da melancolia

De certa maneira podemos dizer que o melancólico vive entre o peso da determinação inescapável do seu corpo e a leveza da agilidade da sua imaginação. E, essa é muitas vezes a posição que o poeta experimenta entre a determinação transcendental de um sofrimento irrepresentável e o desejo de se alcandorar espiritualmente a regiões mais seguras onde a plenitude de sentido seja encontrada. Um exemplo desse sofrimento é o testemunho de uma doente de Tellenbach reportado por Binswanger. Esta doente comparava os doentes de melancolia na sua incapacidade para o contacto humano, para a intuição e o amor ao “leito seco de um ribeiro” ou a “carris sobre os quais nada passa”. Porém, ainda mais forte, descritiva e rigorosa é a comparação seguinte:

"Pouco importa que material de combustão se deita neste braseiro de sofrimento e de que maneira está aceso o fogo. De certa maneira, é até muito bom que se encontrem objectos para aí deitar; pois a verdadeira e assustadora essência da angústia da depressão reside na sua falta de objecto." [BINSWANGER, 1987: Mélancolie et Manie. Etudes Phénoménologiques, PUF, pp.54-55]

Na polaridade oposta Bachelard, em L’Air et les Songes representa muito bem a capacidade de intuição, de amor à vida e de contacto com os outros e o mundo:
"Para bem conhecer as emoções finas no seu devir, o primeiro estudo consiste, para nós, em determinar a medida em que elas nos aliviam ou a medida em que nos pesam. É o seu diferencial vertical positivo ou negativo que melhor designa a sua eficácia, o seu destino psíquico. Formularemos por isso este primeiro princípio da imaginação ascensional: de todas as metáforas, as metáforas da altura, da elevação, da profundidade, do abaixamento são por excelência metáforas axiomáticas. Nada as explica e elas explicam tudo. Mais simplesmente: quando queremos muito vivê-las, senti-las, e sobretudo compará-las, damo-nos conta que elas trazem consigo uma marca essencial e que são mais naturais que todas as outras. Engajam-nos mais que as metáforas visuais, mais do que qualquer outra imagem deslumbrante. E contudo a linguagem não as favoriza. A linguagem, instruída pelas formas não sabe com facilidade tornar pitorescas as imagens dinâmicas da altura. Entretanto, estas imagens são de um poder singular: comandam a dialéctica do entusiasmo e da angústia. A valorização vertical é tão essencial, tão segura, a sua supremacia é tão indispensável que o espírito não pode afastar-se dela uma vez que a tenha reconhecido no seu sentido imediato e directo. Não passamos sem o eixo vertical para exprimir os valores morais. Quando tivermos compreendido melhor a importância de uma física da poesia e de uma física da moral, atingiremos esta convicção: toda a valorização é verticalização." [BACHELARD, 1943: L'air et les Songes, p.18]
Entre estas duas possibilidades fica o mistério da criação de uma identidade. Entre estas duas faces, o destino de um corpo e a dinâmica de uma alma. O melancólico não pode fugir de si, pois é extremamente sensível ao seu próprio estado. Quer dizer, tem uma forte auto-consciência, dá-se rapidamente conta do estatuto ilusório, e falso, das suas construções imaginárias quando as compara com a realidade empírica. Num processo, tipo vaivém, o melancólico pode experimentar a violência ígnea e eruptiva da cólera ou a mais profunda das apatias, a leveza e a felicidade visionária de si e do mundo ou a mais destrutiva representação de si mesmo e da vida.

Belacqua, 2002

Wednesday, December 15, 2004

O olhar melancólico


Konrad Hahn - melancolia (arte digital)

Da criatividade do melancólico

para a Joana

Diz que tem de dizer as coisas que sente e eu contraponho-lhe que deve fazê-las como se as sentisse. Se assim proceder pouco importa que as sinta ou não, pois desse modo é irrelevante a alternativa entre franqueza e mentira. Há um livro muito interessante sobre este tema do René Girard (Mensonge romantique et vérité romanesque), que mostra bem como a verdade romanesca (isto é, ficcionada mas estética e reflexivamente estruturada) é coisa bem diferente da mentira romântica, que pretende passar pela representação da verdade mais original sentida pelo sujeito criador. A melancolia é o fogo que permite fundir, na forja da linguagem e no forno do tempo, as expectativas e as formas, pouco importa que as primeiras sejam as mais verdadeiras e as segundas filhas do artifício e da cultura. A propósito do seu conto Salammbô, Flaubert dizia quão “poucos imaginam a tristeza que foi necessária para ressuscitar Cartago”, confirmando e aprofundando uma sua perplexidade perante a eternidade da melancolia exposta numa pergunta em carta a Louise Colet: “De onde vêm as melancolias históricas, as simpatias através dos séculos...”. A tristeza não é o retrato do melancólico mas antes a atmosfera que o circunda e lhe resiste, uma espessura do tempo e das coisas que desconjuntadamente subsiste à ductilidade aguçada do seu movimento e do seu discurso. Uma frialdade de morte que por vezes quase apaga o fogo do seu espírito.
Por tudo isto isso não me volte a dizer que só vê a melancolia nos traços da tristeza, a não ser que seja para concordar que na seriedade das crianças brincando estão a leveza e a dor do poeta futuro.
Belacqua

A morte de Hércules


Gustave Moreau (1826-1898) - Detalhe de Hércules (a morte)

A minha melancolia


Quero que se volte a ler a teoria humoral do peripatético como se de um texto fundador da humanidade no homem se tratasse. Quero reconstruir o conceito de melancolia e a existência melancólica de modo a torná-los, a ele e a ela, tão claros como a experiência da negrura no meio do mar e do céu, agitados e desencontrados pela mais definitiva das tempestades, contra o horizonte invisível do fim. Desejo que ela seja compreendida como um resto luxuoso e deslumbrante que me ponha à beira da vida mais intensa e da morte mais desejada. Peço-a inesgotável na sua agudeza e no seu fogo, mesmo que em cada momento eu esteja ou à beira do mais frio, profundo e assustadoramente calmo dos lagos ou nas fragas do mais explosivo e cortante dos vulcões.
Belacqua

Monday, December 13, 2004

Saturno



Crono devorando o seu filho II


François Launet

Crono devorando o seu filho I


Goya (1820-1823) Museu do Prado.

Tristeza versus melancolia

Alguém disse outro dia a um amigo meu: “para soturno bastas tu”. Querendo com isso dizer que ele, contrariamente a ela (tratava-se de uma mulher), positiva e optimista, era triste e cinzento. Como esse meu amigo se eriçou e abespinhou significativa e confrangedoramente contra tal qualificativo senti-me obrigado a recordar-lhe que como Nietzsche no-lo indica, no plano global em que homens e mulheres existem, e que é o da bellum omnium contra omnes, a verdade não passa de um uso retórico da linguagem de combate para a vitória absoluta sobre o contendor. Como acresce que dizer o meu amigo soturno é a mais dissimulada e rematada das falsidades, sinto-me obrigado a fazer e mostrar a diferença entre tristeza e melancolia.
Com efeito, a palavra “soturno” significa “taciturno ou melancólico”, “tristonho, lúgubre, misantropo, sombrio, carregado, macambúzio, medonho”, e deriva de uma variante de Saturno, planeta bem distante no sistema solar e cuja órbita lenta e longa em volta do sol teve como efeito cultural o ser simbolicamente tomado como representando a velhice, a tristeza e o silêncio. No quadro das idades do homem, Saturno significa o Inverno da vida, a velhice e a sua frialdade. Contudo este sentido está culturalmente inscrito na interpretação popular de tradições mais eruditas e herméticas que davam ao planeta o sentido do “chumbo”; no hermetismo mais reflexivamente marcado é a cor negra e a matéria putrefacta. Mas o significado mais profundo da leitura hermética de Saturno, e que mais me interessa, é o da sua função de separador, como ferida entre um fim e um início, como a abismo a ultrapassar. Sublinha-se aqui o sentido de obstáculo ao movimento do tempo.
A mitologia romana de Saturno dá-lhe um papel civilizador, de deus que ensina o cultivo da terra. Toma-o como o Crono grego que expulso da Grécia por seu filho Zeus (Júpiter na mitologia romana) se teria vindo refugiar em Itália. Nas festas romanas a ele dedicadas, as Saturnais, o mundo era representado às avessas, talvez um resquício do mito grego de Crono, mutilador do seu pai Úrano, e por sua vez destronado pelo seu filho Júpiter. A imagem das procissões algo carnavalescas em homenagem a Saturno, em que os escravos se tornam senhores, sugere-me ainda uma febre eufórica e momentânea algo próxima de um efeito da melancolia.

Na mitologia Grega o seu nome é Crono, mas a sua significação é diferente. É o mais jovem dos titãs e terá cortado os testículos a seu pai Úrano. Com ele fecha-se o primeiro período dos deuses e inicia-se com Reia, sua irmã e esposa, uma nova era que termina com a sua expulsão determinada por Zeus, seu filho, a pedido da mãe. Crono seguindo prognóstico de seus pais (Úrano e Geia) devorava todos os seus filhos mas Reia engana-o e consegue conservar Zeus que posteriormente dá uma droga a seu pai que o obriga a regurgitar toda a progenitura de Reia. Finalmente, Zeus vence a guerra com seu pai e encerra Crono e todos os Titãs no lugar dos Hecatonquiros que se tornam os seus carcereiros. Muito cedo, Crono é confundido com chronos (Κρόυοςo – Crono; Χρόυος – tempo). A confusão involuntária ou o jogo com o sentido das duas palavras é interessante pois também o tempo devora a vida e os dias.

(a continuar)
Belacqua

Saturday, December 11, 2004

A melancolia criativa


Dacosta, 1942 - (1914-1990)

A negra melancolia


Charcoal, 2003.

A melancolia e arte

A melancolia, enquanto símbolo cultural e literário, pode ser compreendida como a referência à situação que conduz o príncipe Hamlet a dizer a Horatio e Marcellus:
"Desconjuntou-se o tempo e é meu maldito fado
Ter de pôr a direito o tempo errado." [Hamlet: final do 1º Acto ― SHAKESPEARE]
“Desconjuntou-se o tempo”, The time is out of joint, (segundo a belíssima tradução de Sofia Mello Breyner Adresen), ou numa imagem menos bela e mais pitoresca, se bem que talvez mais literal, “o tempo está fora dos gonzos”. Ao melancólico, como diz o príncipe Hamlet sobre si próprio, cabe tentar voltar a acertá-lo, e ao artista que experimenta a melancolia trabalhar criativamente com esse objectivo como o faz Hamlet por intermédio desse exemplo inesquecível de “teatro dentro do teatro” que é o “Dumb Show”. Mas, porventura, como Orfeu no Hades, dividido entre cumprir a regra dos deuses de não poder olhar a sua Eurídice e o desejo incontrolável de confirmar que ela o segue para o mundo dos vivos, o artista melancólico vive entre a unidade encantatória do seu canto e o perigo constante da fragmentação, tanto de si mesmo como da sua criação; entre o cisne heráldico e o bobo de feira ou, do avesso, entre a auto-desvalorização depressiva e a hiper-valorização maníaca. O perigo da paralisia acidiosa configura-se muitas vezes na imagem da quietude angustiada e desassossegada. Mas, felizmente, existem processos de ultrapassar essa atonia da vontade, estando a literatura e a arte, seguramente, entre eles. Como aponta Kristeva no Soleil noir, elas podem realizar “aqui o que está para lá”:
"(...) as artes parecem indicar alguns procedimentos que contornam a auto-complacência e que, sem inverter simplesmente o luto em mania, asseguram ao artista e ao conhecedor um ascendente sublimativo sobre a Coisa perdida." [KRISTEVA, 1987: 109]
Paradoxalmente, é com os materiais do trabalho literário e artístico que o simulacro estético torna presente o eterno e eterno o presente. Nesta magia da arte, a poética melancólica tem um papel central.
Belacqua

Friday, December 10, 2004

A melancólica descuidada



Para a Lol V. Stein (da melancolia leninista)

O que determina o melancólico na sua vontade e na sua insistência obsessiva é justamente transformar sombra em luz. A sua corveia, ou destino se quiseres, é jamais ser poupado, no corpo e na alma, à dor.

Belacqua.

a si que não se nomeia (da melancolia leninista)

A melancolia não é tristeza ou dito de outro modo: muito poucos tristes são melancólicos, todos os melancólicos alguma vez são tristes. Deixarei contudo para uma próxima oportunidade a diferença, discursivamente sustentada, entre tristeza e melancolia. Para já, volto a insistir, a tristeza exige frialdade e pouca amplitude na manifestação da energia, enquanto a melancolia é um aparelho extremamente sensível a qualquer variação "térmica" na energia e no estado febril que caracterizam o melancólico.

Belacqua

O enigmático anjo da Melancolia I (a um anónimo)

Meu caro,
não julgo que os objectos representados na gravura sejam os mais abstractos do pensamento. Outros, como os da matemática (não a geometria que é uma ciência do olhar e da figura), são muito mais abstractos. Essa interpretação da gravura é algo banal, porque da subjectividade do artista há um sem número de representações. Tendo que ser breve, apontarei apenas o olhar do anjo algo andrógeno: concentrado e fixado, tomado de uma energia que o sol negro parece desmentir mas que a mão e o punho confirmam, na tenacidade e na teimosia.
Belacqua.

será o mesmo anónimo? a propósito do Angelus Novus.

Mas a modernidade não tem sido outra coisa senão o ruir de tudo o que antes era sagrado. A crítica da modernidade é a sua melhor letra de crédito. O homem natural nunca existiu; parece "boutade" mas não é. Desde a primeira metáfora que ele não existe.
Belacqua.


Depressão

Sobre a tristeza de um anónimo.

Com efeito é estreito o carreiro da melancolia, e tão indefinível que tombar para um dos lados do abismo que a envolve é o mais comum. Porém, jamais deporei a espada, ela é a energia que também a define, pelo menos desde Aristóteles; aliás, para usar as palavras do peripatético, não será a espada que não deporei, mas o arco fonte do maior número possível de tiros apontados ao que no tempo actual da minha vida pede para ser figurado e exposto.

Belacqua

Wednesday, December 08, 2004

Melancolia leninista

Aos comunistas e outros ateus acontecem por vezes coisas que os deixam sem fala, eu que o diga que por tantas infelicidades tenho passado, devido a esta minha crença absurda, como lhe chamava Pessoa, no nada, na negrura à qual voltamos após este vale de ácidas gargalhadas e de doces e salgadas lágrimas. A história que vou relatar é sobre um destes comunistas, e na ocorrência um bem ilustre, de nome Vladimir Ilitch Ulianov. Foi-me contada por Cansado Gonçalves meu professor de filosofia em Moçambique, velho comunista expulso numa purga conduzida por Álvaro Cunhal à época em que escreveu um panfleto contra o esquerdismo. Cansado Gonçalves foi também o autor de um livro A Traição de Salazar. Aí pretendia ele provar que a convicção comum de que o ditador teria sido um bom gestor da coisa pública é errónea e mentirosa; já o li há muito tempo e não me lembro do argumento ou do seu bom fundamento. De todo o modo Cansado Gonçalves foi um professor inesquecível, não apenas pelo relato do pós-passamento de Vladimir Ilitch mas ainda por outras e porventura mais irónicas influências.
Não vou contá-la tal como me foi transmitida, acrescento-lhe algumas contas do meu rosário. É reportada como verdadeira por um sociólogo anarquista basco que no tempo da república espanhola visitou a região dos Urais na, hoje, finada União Soviética. A visita do sociólogo teve a ver com a curiosidade deste em confirmar que as populações dos Urais seriam fisionomicamente parecidas com os Bascos, usariam boina basca e, imagine-se, até falariam russo com sotaque basco. Andava, então, o nosso basco a vaguear pelas estradas, veredas e montes da região, quando viu uma casa rústica muito semelhante, reportou ele, às bascas, com cobertura de colmo e com paredes de palha e lama. Em frente a ela, sentado contra a parede exterior da cubata, estava um velhote chupando ruidosamente um cachimbo. Aproximou-se dele, e após conversar um pouco pediu-lhe para ver o interior da habitação. Segundo as palavras do sociólogo, a tudo, o idoso homem, com um rosto curtido pelas intempéries da vida e da meteorologia, respondeu com bonomia e gentileza rude. Por isso, percebemos que o nosso basco observava o mundo com aquela atenção doce, contudo aguda, que os antropólogos têm, com essa objectividade tão humanista e tão determinante para o porvir feliz e harmonioso de cada homem consigo mesmo e da humanidade no seu conjunto.
Finalmente conquistada a intimidade doméstica pelo anarquista positivo, este observou com cuidado as coisas e os seus lugares, tendo dado por algo que o surpreendeu: por cima de uma cómoda, estética e antropologicamente, desinteressante, viu ele uma série de ícones russos (o velhote era ortodoxo), e entre eles os retratos de Engels, de Marx, de Lenin e de Stalin, dispostos e enquadrados como se de imagens sagradas se tratassem. Quando saiu interrogou o idoso, que continuava sonoramente agarrado ao seu cachimbo. Cuidadosamente (que é a maneira que os antropólogos têm de não assustar a presa), foi dirigindo o seu inquérito para a questão dos ícones e da sua perplexidade com a mistura entre o sagrado e o profano (julgava ele) disposta por sobre a humilde cómoda. Aqui fica o diálogo:
― Explique-me lá porque tem os retratos de Engels, de Marx, de Lenin e de Stalin ao lado da Virgem e dos Santos.
― Porque também eles são Santos. E no paraíso, gozando das doçuras celestiais, nos aguardam. Replicou o velhote.
Cada vez mais surpreendido com aquele inaudito raciocínio, o sociólogo de San Sebastián continuou o interrogatório.
― Mas como? Os três primeiros eram confessos ateus e o último, apesar de ter sido estudante de teologia, não parece ter guardado grandes recordações dos tempos do seminário e julgo que é tão ateu como os outros. Assim lhe respondeu o suave homem:
― Olhe, vou provar-lhe que se eram ateus, Deus foi caridoso com eles e com as tolices e os pecados em que, apesar das suas vidas justas e certeiras, caíram por orgulho e amor à humanidade. E quanto ao nosso amado pai, protector das sagradas Repúblicas Soviéticas, que Deus o guarde de boa saúde para a salvação da Humanidade. Acrescentou beatificamente o velho do Cáucaso
Nesse momento, o velhote retirou o cachimbo da boca com a mão direita e suspirou, levantando os olhos a um céu que já anunciava a noite próxima. Após este interlúdio, tão significativo e revelador do bom fundamento da doutrina socialista para a harmonia entre a grandeza do céu e a profundidade simples e franca do homem, o velho continuou:
― Por exemplo, o nosso amado e adorado Lenin achou-se, momentos após o seu passamento, claro está, contrariado, sentado à sombra de um grande pedregulho e a poucos metros da magnífica porta do Paraíso e pensou lá para os seus colchetes: "estou lixado esta m... sempre existia e eu não fiz outra coisa que não fosse apostar toda a minha vida na sua não existência". Rapidamente percebeu que não podia aí entrar pelo que se pôs à procura do Inferno (os ortodoxos não devem ter Purgatório). Após grandes trabalhos e canseiras lá deu com a diabólica fornalha e dirigiu-se a um diabo que não parecia ter grande coisa que fazer. Este, por ser tão velho, tinha uma cor vermelho-azulada, como o traseiro dos macacos. Perguntou-lhe Vladimir Ilitch:
― Senhor diabo, diga-me se estou aqui registado pois a noite aproxima-se e não gostava de ficar ao relento?
― Como se chama? Ripostou-lhe este primo do Belzebu, acrescentando:
― Mas olhe não tenha grandes esperanças de aqui estar.
― O meu nome....ou melhor fiquei conhecido por Lenin. Avançou logo o pobre russo, pois imaginava que esse nome fosse muito conhecido, demasiado conhecido na corte belial.
― Não, lamento mas aqui não está. Retorquiu-lhe o melancólico diabo.
Desapontado, e já suspeitando que por aquelas paragens não havia lugar para ele, teve, apesar disso, a curiosidade de pôr algumas questões àquele diabo triste mas prestável.
― Isto parece-me algo abandonado e decadente. Julgava eu que encontraria aqui grande azáfama de almas, de diabos e de fogueiras. Um corrupio de diabos atarefados entre torturas e lavagens de caldeirões e outras louças. Que vos aconteceu?
― Ó. Caro senhor isto já não é o que era. Diabos há muitos, mas todos aí pelos cantos, dormitando como o Belacqua amigo do Dante, com a cabeça entre os joelhos e as pálpebras pesadas. Tirando o senhor Sade e algumas das suas relações não há hoje praticamente ninguém.
Lenin despediu-se do Inferno e voltou à porta do Paraíso, na qual bateu, mas muito a medo e nada convicto de que assim encontrasse guarida para pernoitar. Apareceu-lhe à porta São Pedro:
― Que posso fazer por si? Gentilmente se lhe dirigiu o primeiro chefe da Igreja.
― Bem, eu sou Vladimir Ilitch Ulianov e gostava de saber se estou aqui?
São Pedro deve ter ido a um qualquer arquivo, pois demorou-se um ázimo e quando voltou informou Lenin de que não estava. Já algo impaciente mas sem o demonstrar, insistiu o nosso revolucionário.
― Olhe que eu fiquei mais conhecido por Lenin. Talvez eu conste com esse nome.
― Não, aqui as almas estão registadas com o seu nome de baptismo. Retorquiu-lhe um pouco rispidamente São Pedro, fechando a porta.
O pobre Vladimir Ilitch lá voltou para o pedregulho, desta vez sentando-se encostado a ele, mas virado para ocidente, de onde alguns raios solares ainda o podiam aquecer um pouco. Estava genuinamente preocupado com a situação desesperada em que se encontrava. Estava ele com este ânimo quando viu ao longe uma figura que lhe era conhecida: um homem com um saco às costas, o que o fez imaginar que era um judeu errante. Ficou um tanto ou quanto mais animado, "pelo menos companhia ia ter e se de facto fosse um judeu errante também não teria lugar onde ficar". Confortado por esta comunidade na desgraça, esperou que a figura se aproximasse.
Entretanto o homem que vinha de sacola às costas era de facto um judeu ...e russo. Vladimir Ilitch estava efectivamente com sorte. Quando o homem viu quem estava à porta do paraíso riu-se a bom rir. Lenine percebendo isso sentiu o aguilhão da humilhação, mas consciente da situação em que estava não deu vazão à sua irritação, e quando o homem o alcançou, dirigiu-se-lhe com as palavras seguintes:
― Porque se ri?
― Bem. Eu conheço-o e já adivinho o que lhe acontece. Toda a vida com certezas e agora esta catástrofe! Respondeu-lhe o carregado homem que continuou:
― Mas como você até não foi muito mau para os judeus estou disposto a ajudá-lo.
Lenine sentiu algum alívio mas não imaginava como podia um judeu valer-lhe naquela situação.
― Mas como se você é judeu. E por isso deve estar numa situação semelhante à minha, sem lugar onde passar a noite fria que já se aproxima.
― Isso não lhe diz respeito. Retorquiu-lhe misteriosamente o homem. E acrescentou pousando o saco no chão.
― Ora meta-se aqui dentro deste saco.
Vladimir Ilitch, soergueu as sobrancelhas e abriu muito os olhos de surpresa, mas fez exactamente isso, tão desesperado estava. O judeu dirigiu-se à porta do Paraíso e bateu. Quando São Pedro veio à porta, perguntou-lhe:
― O senhor Karl Marx está?
Respondeu-lhe São Pedro:
― Está, mas não o pode atender pois está às voltas com um daqueles problemas de que tanto se ocupa.
― Pois então diga-lhe que está aqui um judeu seu amigo que ele virá. Disse o homem sem se descoser.
Por alguns momentos, durante os quais o nosso Vladimir, apertado dentro do saco, se perguntava se na realidade Marx estava no Paraíso e se, em caso afirmativo, viria à porta, o judeu com o saco e a sua carga revolucionária esperou no vão da porta. Vem Karl Marx:
― Diga. Tenho muito que fazer!
― Foi o senhor que escreveu O Capital?
― Fui sim. Porquê?
O judeu entregando o saco com Lenin lá embrulhado disse ao autor de O Capital:
― Aqui tem o juro.
Belacqua, Lisboa 1980.

Benjamin em Angelus Novus


Lloyd Spencer

O tempo

"(...)
Sabía, como el griego, que los días
Del tiempo son espejos del Eterno.
(...)" [BORGES].


As coisas, como os homens, morrem mas o que espiritualmente foi investido nelas não perece e fica pelo mundo a olhar-nos através dos nossos desejos e dos nossos sonhos.
Belacqua

Saturday, December 04, 2004

O poeta


Ribera (1591-1652)

A tristeza

Estou tristíssimo. Imaginei que tinha finalmente, e depois de tantos anos, encontrado uma passagem, até aí imperceptível, para fora do negro círculo que Saturno e uma fada negra, porém lindíssima, me tinham ofertado como destino naquele momento já longínquo em que percebi o sentido do negro raio do meu olhar. Mas, não há de facto saída. Antes ame esse carreiro no limite do abismo, sem nunca nele me lançar. Os gestos grandiosos e definitivos são ainda uma positividade e causam-me náusea como o jantar requentado de pesadas iguarias. E, apesar do meu aparente entusiasmo com a vida, semelhante ao que intuo em Maldoror, tenho-lhe um grande desprezo. O melhor que se pode fazer é esperar pela sua negra irmã desejando-a intimamente como a uma mulher amada nos inclina a vida. Para quando ela chegar ter já a trouxa feita, não como um balanço final (nem isso), mas como quando nos vêm buscar para uma viagem anunciada de que não esperamos grande coisa: “Belacqua, vamos, é tempo!” e responder-lhe, “tardaste”. A morte será o meu único amor, o mais sério, o mais terno e o mais profundo.
Belacqua, 4 de Dezembro de 2004.

Thursday, December 02, 2004

Melancolia I


Dürer (1517) - 1471-1528.

Wednesday, December 01, 2004

Angelus Novus


Klee (1879 - 1940)