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Melancolia

espaço de discussão e de reflexão sobre a melancolia, tanto como sentimento como enquanto atitude diante da contemporaneidade e da sua cultura.

Monday, December 13, 2004

Tristeza versus melancolia

Alguém disse outro dia a um amigo meu: “para soturno bastas tu”. Querendo com isso dizer que ele, contrariamente a ela (tratava-se de uma mulher), positiva e optimista, era triste e cinzento. Como esse meu amigo se eriçou e abespinhou significativa e confrangedoramente contra tal qualificativo senti-me obrigado a recordar-lhe que como Nietzsche no-lo indica, no plano global em que homens e mulheres existem, e que é o da bellum omnium contra omnes, a verdade não passa de um uso retórico da linguagem de combate para a vitória absoluta sobre o contendor. Como acresce que dizer o meu amigo soturno é a mais dissimulada e rematada das falsidades, sinto-me obrigado a fazer e mostrar a diferença entre tristeza e melancolia.
Com efeito, a palavra “soturno” significa “taciturno ou melancólico”, “tristonho, lúgubre, misantropo, sombrio, carregado, macambúzio, medonho”, e deriva de uma variante de Saturno, planeta bem distante no sistema solar e cuja órbita lenta e longa em volta do sol teve como efeito cultural o ser simbolicamente tomado como representando a velhice, a tristeza e o silêncio. No quadro das idades do homem, Saturno significa o Inverno da vida, a velhice e a sua frialdade. Contudo este sentido está culturalmente inscrito na interpretação popular de tradições mais eruditas e herméticas que davam ao planeta o sentido do “chumbo”; no hermetismo mais reflexivamente marcado é a cor negra e a matéria putrefacta. Mas o significado mais profundo da leitura hermética de Saturno, e que mais me interessa, é o da sua função de separador, como ferida entre um fim e um início, como a abismo a ultrapassar. Sublinha-se aqui o sentido de obstáculo ao movimento do tempo.
A mitologia romana de Saturno dá-lhe um papel civilizador, de deus que ensina o cultivo da terra. Toma-o como o Crono grego que expulso da Grécia por seu filho Zeus (Júpiter na mitologia romana) se teria vindo refugiar em Itália. Nas festas romanas a ele dedicadas, as Saturnais, o mundo era representado às avessas, talvez um resquício do mito grego de Crono, mutilador do seu pai Úrano, e por sua vez destronado pelo seu filho Júpiter. A imagem das procissões algo carnavalescas em homenagem a Saturno, em que os escravos se tornam senhores, sugere-me ainda uma febre eufórica e momentânea algo próxima de um efeito da melancolia.

Na mitologia Grega o seu nome é Crono, mas a sua significação é diferente. É o mais jovem dos titãs e terá cortado os testículos a seu pai Úrano. Com ele fecha-se o primeiro período dos deuses e inicia-se com Reia, sua irmã e esposa, uma nova era que termina com a sua expulsão determinada por Zeus, seu filho, a pedido da mãe. Crono seguindo prognóstico de seus pais (Úrano e Geia) devorava todos os seus filhos mas Reia engana-o e consegue conservar Zeus que posteriormente dá uma droga a seu pai que o obriga a regurgitar toda a progenitura de Reia. Finalmente, Zeus vence a guerra com seu pai e encerra Crono e todos os Titãs no lugar dos Hecatonquiros que se tornam os seus carcereiros. Muito cedo, Crono é confundido com chronos (Κρόυοςo – Crono; Χρόυος – tempo). A confusão involuntária ou o jogo com o sentido das duas palavras é interessante pois também o tempo devora a vida e os dias.

(a continuar)
Belacqua

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