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Melancolia

espaço de discussão e de reflexão sobre a melancolia, tanto como sentimento como enquanto atitude diante da contemporaneidade e da sua cultura.

Wednesday, December 08, 2004

Melancolia leninista

Aos comunistas e outros ateus acontecem por vezes coisas que os deixam sem fala, eu que o diga que por tantas infelicidades tenho passado, devido a esta minha crença absurda, como lhe chamava Pessoa, no nada, na negrura à qual voltamos após este vale de ácidas gargalhadas e de doces e salgadas lágrimas. A história que vou relatar é sobre um destes comunistas, e na ocorrência um bem ilustre, de nome Vladimir Ilitch Ulianov. Foi-me contada por Cansado Gonçalves meu professor de filosofia em Moçambique, velho comunista expulso numa purga conduzida por Álvaro Cunhal à época em que escreveu um panfleto contra o esquerdismo. Cansado Gonçalves foi também o autor de um livro A Traição de Salazar. Aí pretendia ele provar que a convicção comum de que o ditador teria sido um bom gestor da coisa pública é errónea e mentirosa; já o li há muito tempo e não me lembro do argumento ou do seu bom fundamento. De todo o modo Cansado Gonçalves foi um professor inesquecível, não apenas pelo relato do pós-passamento de Vladimir Ilitch mas ainda por outras e porventura mais irónicas influências.
Não vou contá-la tal como me foi transmitida, acrescento-lhe algumas contas do meu rosário. É reportada como verdadeira por um sociólogo anarquista basco que no tempo da república espanhola visitou a região dos Urais na, hoje, finada União Soviética. A visita do sociólogo teve a ver com a curiosidade deste em confirmar que as populações dos Urais seriam fisionomicamente parecidas com os Bascos, usariam boina basca e, imagine-se, até falariam russo com sotaque basco. Andava, então, o nosso basco a vaguear pelas estradas, veredas e montes da região, quando viu uma casa rústica muito semelhante, reportou ele, às bascas, com cobertura de colmo e com paredes de palha e lama. Em frente a ela, sentado contra a parede exterior da cubata, estava um velhote chupando ruidosamente um cachimbo. Aproximou-se dele, e após conversar um pouco pediu-lhe para ver o interior da habitação. Segundo as palavras do sociólogo, a tudo, o idoso homem, com um rosto curtido pelas intempéries da vida e da meteorologia, respondeu com bonomia e gentileza rude. Por isso, percebemos que o nosso basco observava o mundo com aquela atenção doce, contudo aguda, que os antropólogos têm, com essa objectividade tão humanista e tão determinante para o porvir feliz e harmonioso de cada homem consigo mesmo e da humanidade no seu conjunto.
Finalmente conquistada a intimidade doméstica pelo anarquista positivo, este observou com cuidado as coisas e os seus lugares, tendo dado por algo que o surpreendeu: por cima de uma cómoda, estética e antropologicamente, desinteressante, viu ele uma série de ícones russos (o velhote era ortodoxo), e entre eles os retratos de Engels, de Marx, de Lenin e de Stalin, dispostos e enquadrados como se de imagens sagradas se tratassem. Quando saiu interrogou o idoso, que continuava sonoramente agarrado ao seu cachimbo. Cuidadosamente (que é a maneira que os antropólogos têm de não assustar a presa), foi dirigindo o seu inquérito para a questão dos ícones e da sua perplexidade com a mistura entre o sagrado e o profano (julgava ele) disposta por sobre a humilde cómoda. Aqui fica o diálogo:
― Explique-me lá porque tem os retratos de Engels, de Marx, de Lenin e de Stalin ao lado da Virgem e dos Santos.
― Porque também eles são Santos. E no paraíso, gozando das doçuras celestiais, nos aguardam. Replicou o velhote.
Cada vez mais surpreendido com aquele inaudito raciocínio, o sociólogo de San Sebastián continuou o interrogatório.
― Mas como? Os três primeiros eram confessos ateus e o último, apesar de ter sido estudante de teologia, não parece ter guardado grandes recordações dos tempos do seminário e julgo que é tão ateu como os outros. Assim lhe respondeu o suave homem:
― Olhe, vou provar-lhe que se eram ateus, Deus foi caridoso com eles e com as tolices e os pecados em que, apesar das suas vidas justas e certeiras, caíram por orgulho e amor à humanidade. E quanto ao nosso amado pai, protector das sagradas Repúblicas Soviéticas, que Deus o guarde de boa saúde para a salvação da Humanidade. Acrescentou beatificamente o velho do Cáucaso
Nesse momento, o velhote retirou o cachimbo da boca com a mão direita e suspirou, levantando os olhos a um céu que já anunciava a noite próxima. Após este interlúdio, tão significativo e revelador do bom fundamento da doutrina socialista para a harmonia entre a grandeza do céu e a profundidade simples e franca do homem, o velho continuou:
― Por exemplo, o nosso amado e adorado Lenin achou-se, momentos após o seu passamento, claro está, contrariado, sentado à sombra de um grande pedregulho e a poucos metros da magnífica porta do Paraíso e pensou lá para os seus colchetes: "estou lixado esta m... sempre existia e eu não fiz outra coisa que não fosse apostar toda a minha vida na sua não existência". Rapidamente percebeu que não podia aí entrar pelo que se pôs à procura do Inferno (os ortodoxos não devem ter Purgatório). Após grandes trabalhos e canseiras lá deu com a diabólica fornalha e dirigiu-se a um diabo que não parecia ter grande coisa que fazer. Este, por ser tão velho, tinha uma cor vermelho-azulada, como o traseiro dos macacos. Perguntou-lhe Vladimir Ilitch:
― Senhor diabo, diga-me se estou aqui registado pois a noite aproxima-se e não gostava de ficar ao relento?
― Como se chama? Ripostou-lhe este primo do Belzebu, acrescentando:
― Mas olhe não tenha grandes esperanças de aqui estar.
― O meu nome....ou melhor fiquei conhecido por Lenin. Avançou logo o pobre russo, pois imaginava que esse nome fosse muito conhecido, demasiado conhecido na corte belial.
― Não, lamento mas aqui não está. Retorquiu-lhe o melancólico diabo.
Desapontado, e já suspeitando que por aquelas paragens não havia lugar para ele, teve, apesar disso, a curiosidade de pôr algumas questões àquele diabo triste mas prestável.
― Isto parece-me algo abandonado e decadente. Julgava eu que encontraria aqui grande azáfama de almas, de diabos e de fogueiras. Um corrupio de diabos atarefados entre torturas e lavagens de caldeirões e outras louças. Que vos aconteceu?
― Ó. Caro senhor isto já não é o que era. Diabos há muitos, mas todos aí pelos cantos, dormitando como o Belacqua amigo do Dante, com a cabeça entre os joelhos e as pálpebras pesadas. Tirando o senhor Sade e algumas das suas relações não há hoje praticamente ninguém.
Lenin despediu-se do Inferno e voltou à porta do Paraíso, na qual bateu, mas muito a medo e nada convicto de que assim encontrasse guarida para pernoitar. Apareceu-lhe à porta São Pedro:
― Que posso fazer por si? Gentilmente se lhe dirigiu o primeiro chefe da Igreja.
― Bem, eu sou Vladimir Ilitch Ulianov e gostava de saber se estou aqui?
São Pedro deve ter ido a um qualquer arquivo, pois demorou-se um ázimo e quando voltou informou Lenin de que não estava. Já algo impaciente mas sem o demonstrar, insistiu o nosso revolucionário.
― Olhe que eu fiquei mais conhecido por Lenin. Talvez eu conste com esse nome.
― Não, aqui as almas estão registadas com o seu nome de baptismo. Retorquiu-lhe um pouco rispidamente São Pedro, fechando a porta.
O pobre Vladimir Ilitch lá voltou para o pedregulho, desta vez sentando-se encostado a ele, mas virado para ocidente, de onde alguns raios solares ainda o podiam aquecer um pouco. Estava genuinamente preocupado com a situação desesperada em que se encontrava. Estava ele com este ânimo quando viu ao longe uma figura que lhe era conhecida: um homem com um saco às costas, o que o fez imaginar que era um judeu errante. Ficou um tanto ou quanto mais animado, "pelo menos companhia ia ter e se de facto fosse um judeu errante também não teria lugar onde ficar". Confortado por esta comunidade na desgraça, esperou que a figura se aproximasse.
Entretanto o homem que vinha de sacola às costas era de facto um judeu ...e russo. Vladimir Ilitch estava efectivamente com sorte. Quando o homem viu quem estava à porta do paraíso riu-se a bom rir. Lenine percebendo isso sentiu o aguilhão da humilhação, mas consciente da situação em que estava não deu vazão à sua irritação, e quando o homem o alcançou, dirigiu-se-lhe com as palavras seguintes:
― Porque se ri?
― Bem. Eu conheço-o e já adivinho o que lhe acontece. Toda a vida com certezas e agora esta catástrofe! Respondeu-lhe o carregado homem que continuou:
― Mas como você até não foi muito mau para os judeus estou disposto a ajudá-lo.
Lenine sentiu algum alívio mas não imaginava como podia um judeu valer-lhe naquela situação.
― Mas como se você é judeu. E por isso deve estar numa situação semelhante à minha, sem lugar onde passar a noite fria que já se aproxima.
― Isso não lhe diz respeito. Retorquiu-lhe misteriosamente o homem. E acrescentou pousando o saco no chão.
― Ora meta-se aqui dentro deste saco.
Vladimir Ilitch, soergueu as sobrancelhas e abriu muito os olhos de surpresa, mas fez exactamente isso, tão desesperado estava. O judeu dirigiu-se à porta do Paraíso e bateu. Quando São Pedro veio à porta, perguntou-lhe:
― O senhor Karl Marx está?
Respondeu-lhe São Pedro:
― Está, mas não o pode atender pois está às voltas com um daqueles problemas de que tanto se ocupa.
― Pois então diga-lhe que está aqui um judeu seu amigo que ele virá. Disse o homem sem se descoser.
Por alguns momentos, durante os quais o nosso Vladimir, apertado dentro do saco, se perguntava se na realidade Marx estava no Paraíso e se, em caso afirmativo, viria à porta, o judeu com o saco e a sua carga revolucionária esperou no vão da porta. Vem Karl Marx:
― Diga. Tenho muito que fazer!
― Foi o senhor que escreveu O Capital?
― Fui sim. Porquê?
O judeu entregando o saco com Lenin lá embrulhado disse ao autor de O Capital:
― Aqui tem o juro.
Belacqua, Lisboa 1980.

3 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Hilariante! Mas realmente, concordando com Lol V. Stein, é uma postura crítica nada melancólica.

11:11 PM  
Blogger Belacqua said...

a si que não se nomeia.

a melancolia não é tristeza ou dito de outro modo: muito poucos tristes são melancólicos todos os melan-cólicos alguma vez são tristes. Deixarei contudo para uma próxima oportunidade a diferença, discursivamente sustentada, entre tristeza e melancolia. Para já volto a insistir, a tristeza exige frialdade e pouca amplitu-de na manifestação da energia, enquanto a melancolia é um aparelho extremamente sensível a qualquer varia-ção "térmica" na energia e no estado febril que caracte-rizam o melancólico.

Belacqua

1:27 AM  
Blogger Belacqua said...

Para a Lol V. Stein.

O que determina o melancólico na sua vontade e na sua insistência obsessiva é justamente transformar sombra em luz. A sua corveia, ou destino se quiseres é jamais ser poupado, no corpo e na alma, à dor.

Belacqua.

1:29 AM  

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