tag: Melancolia: A escada sem degraus da melancolia

Melancolia

espaço de discussão e de reflexão sobre a melancolia, tanto como sentimento como enquanto atitude diante da contemporaneidade e da sua cultura.

Sunday, December 19, 2004

A escada sem degraus da melancolia

De certa maneira podemos dizer que o melancólico vive entre o peso da determinação inescapável do seu corpo e a leveza da agilidade da sua imaginação. E, essa é muitas vezes a posição que o poeta experimenta entre a determinação transcendental de um sofrimento irrepresentável e o desejo de se alcandorar espiritualmente a regiões mais seguras onde a plenitude de sentido seja encontrada. Um exemplo desse sofrimento é o testemunho de uma doente de Tellenbach reportado por Binswanger. Esta doente comparava os doentes de melancolia na sua incapacidade para o contacto humano, para a intuição e o amor ao “leito seco de um ribeiro” ou a “carris sobre os quais nada passa”. Porém, ainda mais forte, descritiva e rigorosa é a comparação seguinte:

"Pouco importa que material de combustão se deita neste braseiro de sofrimento e de que maneira está aceso o fogo. De certa maneira, é até muito bom que se encontrem objectos para aí deitar; pois a verdadeira e assustadora essência da angústia da depressão reside na sua falta de objecto." [BINSWANGER, 1987: Mélancolie et Manie. Etudes Phénoménologiques, PUF, pp.54-55]

Na polaridade oposta Bachelard, em L’Air et les Songes representa muito bem a capacidade de intuição, de amor à vida e de contacto com os outros e o mundo:
"Para bem conhecer as emoções finas no seu devir, o primeiro estudo consiste, para nós, em determinar a medida em que elas nos aliviam ou a medida em que nos pesam. É o seu diferencial vertical positivo ou negativo que melhor designa a sua eficácia, o seu destino psíquico. Formularemos por isso este primeiro princípio da imaginação ascensional: de todas as metáforas, as metáforas da altura, da elevação, da profundidade, do abaixamento são por excelência metáforas axiomáticas. Nada as explica e elas explicam tudo. Mais simplesmente: quando queremos muito vivê-las, senti-las, e sobretudo compará-las, damo-nos conta que elas trazem consigo uma marca essencial e que são mais naturais que todas as outras. Engajam-nos mais que as metáforas visuais, mais do que qualquer outra imagem deslumbrante. E contudo a linguagem não as favoriza. A linguagem, instruída pelas formas não sabe com facilidade tornar pitorescas as imagens dinâmicas da altura. Entretanto, estas imagens são de um poder singular: comandam a dialéctica do entusiasmo e da angústia. A valorização vertical é tão essencial, tão segura, a sua supremacia é tão indispensável que o espírito não pode afastar-se dela uma vez que a tenha reconhecido no seu sentido imediato e directo. Não passamos sem o eixo vertical para exprimir os valores morais. Quando tivermos compreendido melhor a importância de uma física da poesia e de uma física da moral, atingiremos esta convicção: toda a valorização é verticalização." [BACHELARD, 1943: L'air et les Songes, p.18]
Entre estas duas possibilidades fica o mistério da criação de uma identidade. Entre estas duas faces, o destino de um corpo e a dinâmica de uma alma. O melancólico não pode fugir de si, pois é extremamente sensível ao seu próprio estado. Quer dizer, tem uma forte auto-consciência, dá-se rapidamente conta do estatuto ilusório, e falso, das suas construções imaginárias quando as compara com a realidade empírica. Num processo, tipo vaivém, o melancólico pode experimentar a violência ígnea e eruptiva da cólera ou a mais profunda das apatias, a leveza e a felicidade visionária de si e do mundo ou a mais destrutiva representação de si mesmo e da vida.

Belacqua, 2002

0 Comments:

Post a Comment

<< Home