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Melancolia

espaço de discussão e de reflexão sobre a melancolia, tanto como sentimento como enquanto atitude diante da contemporaneidade e da sua cultura.

Wednesday, December 15, 2004

Da criatividade do melancólico

para a Joana

Diz que tem de dizer as coisas que sente e eu contraponho-lhe que deve fazê-las como se as sentisse. Se assim proceder pouco importa que as sinta ou não, pois desse modo é irrelevante a alternativa entre franqueza e mentira. Há um livro muito interessante sobre este tema do René Girard (Mensonge romantique et vérité romanesque), que mostra bem como a verdade romanesca (isto é, ficcionada mas estética e reflexivamente estruturada) é coisa bem diferente da mentira romântica, que pretende passar pela representação da verdade mais original sentida pelo sujeito criador. A melancolia é o fogo que permite fundir, na forja da linguagem e no forno do tempo, as expectativas e as formas, pouco importa que as primeiras sejam as mais verdadeiras e as segundas filhas do artifício e da cultura. A propósito do seu conto Salammbô, Flaubert dizia quão “poucos imaginam a tristeza que foi necessária para ressuscitar Cartago”, confirmando e aprofundando uma sua perplexidade perante a eternidade da melancolia exposta numa pergunta em carta a Louise Colet: “De onde vêm as melancolias históricas, as simpatias através dos séculos...”. A tristeza não é o retrato do melancólico mas antes a atmosfera que o circunda e lhe resiste, uma espessura do tempo e das coisas que desconjuntadamente subsiste à ductilidade aguçada do seu movimento e do seu discurso. Uma frialdade de morte que por vezes quase apaga o fogo do seu espírito.
Por tudo isto isso não me volte a dizer que só vê a melancolia nos traços da tristeza, a não ser que seja para concordar que na seriedade das crianças brincando estão a leveza e a dor do poeta futuro.
Belacqua

3 Comments:

Anonymous Anonymous said...

No fazer as coisas como se as sentisse já reside o acto de dizer o que se sente, mesmo que o que for dito seja franco ou mentiroso, porque a irrelevância não está no dizer, está na alternativa entre a verdade e o tentar ser verdadeiro que nunca resulta. A acção de dizer certas coisas ou de fazer estas últimas pode, ou não, ser “mentira romântica”, em ambos os casos não importa se as coisas foram/são verdadeiramente sentidas ou/e verdadeiramente transmitidas. O que importa é que existam.
Por outro lado, se “fazer as coisas” for muito mais longe do que simplesmente as dizer, perguntou-me se não será isto a que tanto aspira energicamente um melancólico... Onde está o “fazer” de um melancólico? As suas acções ocorrem no pensar: por fora age como se não sentisse, por dentro age como quem não aguenta tanto sentir, tantos sonhos, pensamentos, fantasias e , principalmente, tanta falta de acção (acção pessoal, entenda-se). É talvez aqui que encontramos a câmara dos horrores, onde não se sabe se há acçao, pensamento ou sentimento, só “há”. Como se pode, então, fazer as coisas como se elas fossem sentidas se é no abismo de pensar sobre elas que recai, nasce ou habita toda a energia, a dor e o sorriso que, contraditoriamente, necessita e pede uma acção? A verdade não existe senão na energia do melancólico e, assim sendo, também é irrelevante dizer ou fazer, porque a energia de qualquer uma das pulsões é a mesma. As consequências de ambas as “acções” é que podem ser relevantes, mas isso funciona para qualquer contexto, tanto no dito como no feito. No caso de um melancólico, que nada tem de triste senão a sua atmosfera, a tristeza está em qualquer palavra ou acção promovidas por ele, não porque sejam tristes mas porque quem as ouve, vê, sente ou lê já o faz através do filtro da atmosfera triste que circunda o melancólico. Deste modo, as crianças brincando não são tristes mas o coração de quem seriamente as vê brincar já foi afectado pela melancólia do ar. Daí que volto a dizer que a melancolia existe nos traços da tristeza porque ela ( a melancolia) só é real graças a existência do Outro. Ou seja, um homem melancólico não é triste na sua essência mas é triste na sua existência porque a Alteridade é quem constrói o melancólico, e qualquer contacto entre ambos implica o filtro da atmosfera triste, a “frialdade de morte que por vezes quase apaga o fogo do(...)” espírito do melancólico.
Olhando agora o “olhar melancólico” (preciso ugentemente de sinónimos para esta palavra) por Konrad Hahn, lembro-me, do nada, de uma canção de Vinicius de Morais: “Quando a luz dos olhos meus/ E a luz dos olhos teus/ Resolvem se encontrar (...)” porque é neste encontro que se encontra a tristeza, não no olhar do meláncolico mas no encontro dos olhares. Por algum motivo quando olho para um palhaço alegre, todo pintado de cores vivas, não vejo senão tristeza, querendo lá eu saber se ele é melancólico, feliz ou triste! Não sabia que ia chegar a esta conlcusão, mas cheguei: a tristeza da melancolia está em quem olha para o melancólico, não porque o voyeur seja triste mas porque o seu raio de visão cheira a tristeza e, por consequinte, o melancólico também. Agora pergunto, não ficará triste o melancólico com mais um desencontro com o mundo exterior?
Tristeza não é sinónimo de melancolia mas os traços de ambas encontram-se, nem que seja no outro, e aí já nada pode dizer querido Belacqua, porque o Outro sou eu.

Joana.

10:06 PM  
Anonymous Anonymous said...

A Joana escreve como quem se consome na paixão da própria dor. Não se deixe enredar no círculo da auo-análise estéril.
A questão do fingimento literário (e da estética romântica do "coração na boca", fingimento não assumido) que Belacqua levanta não são irrelevantes ou inconsequentes para os que escrevem com aspirações literárias (é sempre bom reler, a este respeito, a "Autopsicografia"). Já para quem se serve do acto da escrita para fins puramente terapêuticos a questão é realmente pouco imporante, uma vez que o seu objectivo final é a exteriorização e concretização de sentimentos e não a produção de um objecto estético.
Mas é sempre conveniente distinguir os planos em que falamos...
Gostei muito do seu texto.

R.O.C

3:14 PM  
Anonymous Anonymous said...

Lá está, não consigo fingir que sou a “dor que deveras sint(o)”,
Não tenho aspirações literárias, mas nos meus fins terapêuticos gosto quando tudo fica irrelevante perante a beleza do resultado. Se escrevi como quem se consome na paixão da própria dor, “Na dor lida sent(iu) bem, / Não as duas que (eu) t(i)ve,/ Mas só a que (R.O.C) Não t(e)m.”.
Concordo plenamente na distinção dos dois planos, gostando quando utopicamente eles se unem.
Obrigada pelo seu comentário.

Joana.

5:32 PM  

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